domingo, 24 de janeiro de 2010

Maçãs

Observem o fim a festejar
Há e haverá sempre tantas carcaças
por onde escolher
Ouçam todo o peso
a inclinar o vosso corpo
não é dissonante o
fato que vestes o
facto que te mata?

Eu vi gargantas a implorar
por liberdade
vi bocas cheias de sede
rodeadas de água
vi saliva seca
a apodrecer na terra

“Faz-me acreditar que serei
rico e belo e eu serei
teu escravo para sempre”

Eu vi almas a gritar
por ignorância
vi valas cheias de corpos
sem cérebro
vi uma maçã podre
a contaminar todas as outras

“Eu só te quero ver morto,
a um nível essencial,
a um nível necessário”

Não vou querer palavras
na minha campa
nem sequer um nome
Só lá quero o martelar
dos meus passos

“Eu só te quero ver a morrer, sem palavras”

Os heróis do mundo,
os verdadeiros,
eles não têm cara.
As boas maçãs são
as que te sabem de forma diferente.
Há maçãs que só te sabem.
Há maçãs que só te maçam.
Há maçãs que tu sabes que só te maçam.

Um mundo, um canto secreto
e o som rebentou em todos
os ouvidos. Ninguém queria saber.
Ninguém queria que soubesses.
Eu? Eu só quis roubar as
flores do mundo
e mostrar-te que também elas
podem apodrecer.

O facto é que um fato te aperta sempre a garganta. O pescoço.
Eu? Eu só te quis mostrar as maçãs e as flores.
Eu só te quis mostrar valas e carcaças.

Eu vi maçãs, todas elas iguais
expostas em cestos,
apenas a existirem,
a serem vermelhas.
À espera de serem vendidas
e devoradas.

Eu vi as melhoras maçãs
a serem corroídas por bicho.
Eu cuspi essas maçãs
dos meus olhos.
Eu chorei essas maçãs.


Passo por valas e vejo
corpos e carcaças.
E maçãs. Tudo apodrecido,
numa vala comum.
Tudo comum e igual.
Eu choro essas maçãs.

Eu vi caroços cuspidos,
junto com saliva,
pedidos no chão.
O interior esmagado.
O peso do facto.
O peso dum fato.

Todos gritamos,
e todos calamos.

Os verdadeiros heróis
não têm cara ou
voz.

Os verdadeiros heróis
estão mortos.

Ouve o grito e cala-te.
Eu? Eu só quero ser teu escravo.
Para sempre.
Sem cara. Sem voz.

1 comentário:

  1. "todos gritamos e todos calamos"
    infelizmente é o que acontece sempre...
    bom poema
    Obrigada pelo coment

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